sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Marcão era um negão boa pinta, sarado e bom de papo. Adorava churrasco, um pagode e, claro, mulher. Era casado com uma prima dos meus pais. Durante alguns anos, na minha infância, o casal, junto com a filha Gabriela, hoje uma mulher lindíssima, morou na casa vizinha à minha, em Mococa.

Professor de educação física, Marcão adorava malhar, praticar esportes e exibir os músculos. Era um tipo malandro, bem humorado, piadista, daqueles capazes de animar até velório. Batia cartão em todas as festas da família. E sempre era o centro das atenções com suas tiradas hilárias. Em especial quando fazia a sua imitação de uma bicha.


Gente boa, Marcão me deu muitas caronas na sua moto vermelha. Principalmente quando eu voltava para casa depois do treino de futebol. O campo era perto de uma escola onde ele dava aulas. E os nossos horários de saída coincidiam. Marcão, aliás, costumava guardar a moto na garagem lá de casa, já que a dele não tinha uma. Sempre que a máquina estava por lá, eu montava e brincava, me imaginando numa corrida.


Marcão foi a primeira paixão de muita menininha da rua lá de casa. Fazia um sucesso enorme entre as alunas. E não resistia a um rabo-de-saia. Me lembro dos meus pais comentando sobre as brigas entre ele a mulher, sempre que ela descobria mais uma traição. Mas a mulher era obviamente apaixonada pelo negão, e sempre acabava relevando as escapadas.


Um dia, chegou a notícia que deixaria a família toda chocada: Marcão tinha morrido. A incredulidade tomou conta de todos. Era quase uma sensação de injustiça por alguém tão jovem, alegre e cheio de vida estar, de repente, morto.


O mais impressionante foi a maneira como ele morreu. Atropelado por um ônibus, enquanto empurrava o carro, em pane, num trecho de uma estrada bem perto de Mococa. Estava acompanhado de uma amante, com quem havia acabado de deixar o único motel da cidade.


O salão do velório não foi suficiente para abrigar tanta gente disposta a se despedir do negão. As pessoas, emocionadas, se espalhavam pelo gramado e até pela calçada. Quando cheguei perto do caixão, primeiro fiquei impressionado com o estado do cadáver. As mãos, apesar de enfaixadas, tinham dedos a menos. No rosto havia grandes hematomas e na boca, inchada e entreaberta, faltavam dentes.

Ao lado do caixão, a viúva chorava de maneira copiosa, enquanto acariciava a testa e os cabelos do marido morto. A uma amiga ao seu lado, lamentava a perda do amor de sua vida.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Dia de Vingança

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Três casas à esquerda daquela onde eu morava, em Mococa, havia uma igreja evangélica. Nos fundos, vivia o pastor com a sua família. A esposa, uma mulher com aspecto de bruxa, que parecia ter saído de um desenho animado e quase nunca colocava a cara na rua, e uns cinco ou seis filhos. Entre eles, dois garotos, Aloísio e Dado, companheiros de muitas brincadeiras nas ruas e na quadra do bairro do Descanso.

Apesar das travessuras, Aloísio e Dado foram o que a gente pode chamar de crianças comportadas. Até o dia em que o pastor morreu.

Isso aconteceu pouco tempo antes de a minha família deixar a cidade. Eu era um pré-adolescente. Aloísio e Dado já não eram mais amigos tão próximos assim. Apesar disso, pude acompanhar a transformação dos garotos em dois dos trombadinhas mais famosos daquela época.

Sem o pai rigoroso por perto, Aloísio e Dado acabaram se juntando a um grupo de moleques do bairro com uma queda pela criminalidade. O líder era um garoto alguns anos mais velho, chamado Carlinhos, que havia se mudado com a família para o bairro poucos meses antes. A partir dali, o pacato Descanso, onde eu cresci, passou a ser conhecido na cidade toda como o berço da marginalidade mocoquense.

Confiantes na impunidade que eles acreditavam que a menoridade lhes conferia, os moleques passaram a praticar pequenos furtos na região. Primeiro, se aproveitaram da típica despreocupação dos interioranos com a segurança de suas casas. Pulavam os baixos muros e portões atrás de roupas e calçados.

(Numa madrugada daquela época, minha família acordou com os latidos da nossa cachorrinha, Tuca. Não havia o que a fizesse sossegar. Meus pais chegaram a tirá-la do quintal e a colocaram para que dormisse no quarto. Mesmo assim, não parava de latir. Algo estranho para uma cadelinha acostumada a dormir tranquilamente a noite toda. Na manhã seguinte, alguns garotos da rua vieram me contar o comentário que se fazia por ali: um dos trombadinhas havia ficado impressionado com os pares de Puma Disc - uma febre da época - que eu e meu irmão mais novo havíamos desfilado no bairro na noite anterior (presente do meu pai). Ele resolveu invadir a minha casa atrás dos tênis, mas desistiu depois que foi surpreendido pelos latidos da Tuca.)

Na sequência, pequenos comércios das redondezas passaram a ser alvo do bando. Era comum ouvir os comentários de vizinhos sobre um bar, uma padaria e, depois, até supermercados, que haviam sido invadidos por ladrões, algo inimaginável até então. Foi nessa época que um fusca preto e branco da Polícia Civil passou a fazer rondas no bairro.

Em dezembro de 1992, minha família se mudou para Mogi das Cruzes, na grande São Paulo. A adaptação e a saudade dos amigos eram as nossas principais preocupações. Até que dois meses depois, um dos meus tios telefona para avisar que nossa casa em Mococa havia sido invadida por ladrões.

Desde o primeiro momento as suspeitas recaíram sobre os trombadinhas do Descanso. Não havia outra possibilidade. Por isso mesmo, durante a viagem em direção ao interior eu me esforçava para entender como é que meus amigos de infância, Aloísio e Dado, poderiam ter feito uma filhadaputagem tão grande comigo.

Algumas horas depois, quando entramos na casa, a impressão era de que um tornado havia passado por lá. A comida que mantínhamos no armário (naquela época, não ficávamos mais do que 15 dias longe da cidade) serviu de arma para a destruição. Enlatados, sardinha, leite, café, tudo foi espalhada pelos móveis, sofá e camas. A televisão da sala foi explodida quando jogaram um litro de uísque do meu pai dentro dela, ligada. Centenas de fotos da família que ainda não tinham sido levadas para Mogi, estavam espalhadas pelo chão, molhadas de urina e sujas de fezes. Nas paredes, no teto e nas cortinas, riscos de molho de tomate e mostarda, além de ameaças contra mim. Alguns brinquedos eletrônicos e roupas haviam sido levados.

Lembro-me até hoje de uma pequena multidão em frente à minha casa, onde também estava estacionado um carro da polícia. Dentro dele, detido, Carlinhos. Pouco depois, seguimos todos para a delegacia da cidade. Os policiais perguntaram ao meu pai se ele queria dar uns tapas em Carlinhos. Em seguida, o garoto, de uns 16 anos, gritava ao som de bofetadas.

Nas horas seguintes, um a um os trombadinhas foram chegando à delegacia, levados pelos policiais. Entravam todos em uma pequena sala. A porta, branca, ficava fechada. Mesmo assim, do lado de fora eu conseguia ouvir o barulho dos tapas e dos gritos dos moleques.

Poucos dias depois, voltamos a Mococa e encontramos os garotos todos na rua. Reunidos na esquina, soltavam gargalhadas sarcásticas quando a família passava de carro.

Naquele mesmo dia, meu pai procurou uma marcenaria do bairro. Encomendou três bastões, parecidos com aqueles de beisebol, só que com furos que vazavam a madeira em uma das pontas, para que fossem colocados pedaços de fio que serviriam de suporte para as mãos. No final da tarde, chamou ao meu irmão mais velho e a mim, então com 13 anos, para conversar. E disse que, ao anoitecer, sairíamos os três para dar uma lição nos trombadinhas de haviam destruído a nossa casa.

Bastões à mão, o trio seguiu em direção ao carro. Quando pisamos na calçada, avistamos três dos moleques conversando na esquina, a menos de 50 metros dali. Dois deles eram justamente os irmãos Aloísio e Dado. Logo que nos avistaram, os três se levantaram e subiram em direção ao pasto recém loteado, a duas quadras dali. Meu pai, meu irmão e eu entramos no carro e fomos atrás deles.

Dentro do Tempra vinho, percorremos as ruas recém asfaltadas do condomínio, ainda sem casas, em busca dos trombadinhas. Depois de algum tempo vasculhando o terreno, chegamos à conclusão de que haviam deixado o lugar pela entrada de cima. Saímos nós também do loteamento e passamos a vasculhar as ruas do bairro vizinho.

Pouco depois, descíamos vagarosamente por uma rua de paralelepípedos quando chegamos num cruzamento. À esquerda, avistamos os três garotos caminhando. Eles perceberam o carro e saíram correndo. Meu pai acelerou o Tempra atrás deles. Segundos depois, alcançamos o trio, que se embrenhou por um terreno enorme, às margens de uma das principais avenidas da cidade. Quando o carro parou, eu já estava com a porta aberta e o enorme e pesado bastão firme na mão direita.

Eu me lembro que era tarde da noite e não havia qualquer movimento no bairro. Na completa escuridão do terreno irregular, eu me guiava pelo barulho dos passos dos garotos, que corriam logo na minha frente. O primeiro que se dispersou do trio, virou o alvo. A perseguição durou mais alguns metros, até que ele se deparou com uma imensa valeta. O impulso não foi suficiente para completar o salto, e ele caiu de bruços na outra margem do canal. Antes que ele pudesse se levantar, eu saltei em sua direção e deitei um forte golpe com o bastão em suas costas. O garoto urrou de dor.

Quando me levantei, vi que se tratava de Dado, o mais jovem dos trombadinhas, então com 13 anos, assim como eu. Até um par de anos atrás, Dado podia ser considerado um dos meus melhores amigos e parceiro preferencial nas peladas jogadas na quadra do bairro. Agora estava ali, deitado no lama e implorando pelo meu perdão.

Cego pela cólera alimentada pelo meu pai, sedento de vingança, segurei o garoto até que, alguns segundos depois, chegaram meu pai e meu irmão. Dado levou mais uns bofetões e foi liberado. Nós três voltamos para casa. Pelos anos seguintes, os bastões ficaram pendurados no beliche do meu antigo quarto. Nunca mais foram usados.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Sobre corações partidos, mas nem tanto

- Tínhamos, ambos, por volta de sete anos. Éramos crianças, claro. Mesmo assim, tenho certeza, foi o meu primeiro amor.

Cacto me interrompe. Diz que nada havia me perguntado.

Falava a ele da minha primeira namorada. Chamava-se Julia. Era linda. Loira de olhos verdes. E me amava. Naquela mesma época, teve que deixar o Brasil para viver com os pais por um período na Argentina. Namoramos à distância. Trocávamos cartas. As dela sempre vinham também recheadas com maços vazios de cigarros, que eu colecionava.

Ao lado da casa da avó de Julia, perto daquela onde eu vivi, em Mococa, havia um imóvel antigo, também da família, onde havia funcionado um centro espírita. Desativado o centro, o espaço passou a receber os bailinhos onde reuníamos a garotada toda do bairro para dançar e paquerar.

Cacto pergunta se foi nessa época que eu virei maconheiro, e gargalha.

Era uma época de pura e total inocência. Entre os garotos, a competição era para ver quem tinha coragem, durante as danças, de arriscar uma inocente passada de mão nos glúteos das garotinhas. Era o máximo da malandragem a que nos sujeitávamos.

Inesquecíveis aqueles bailinhos. Foi em um deles que eu virei corno pela primeira vez. (cacto, enfim, mostra interesse em um relato meu). Estávamos lá todos, dançando ao som de uma vitrola portátil, quando vejo Julia – aquela mesma, o meu primeiro amor – aos beijos com um garoto da vizinhança.

Cacto quer saber qual foi a minha reação. Respondo que não me recordo. Provavelmente, abandonei o baile e fui para casa, magoado. Maldoso, cacto diz que, se não maconheiro, frouxo ele agora já sabe que eu sou desde criança.

Pouco depois, Julia voltou para a Argentina. Mais algum tempo e foi a minha vez de sair da cidade. Reencontramo-nos uma única vez depois disso tudo. Foi há uns 13 anos, numa das minhas visitas a Mococa. Julia estava extremamente bêbada. E demonstrou muita alegria e surpresa em me ver. Antes que pudesse me dar conta, estávamos de lábios colados.

Minhas mãos logo avançaram a explorar seus lindos peitos. Foi inevitável me lembrar do garotinho traído anos atrás. Sentia que ele sorria dentro de mim com a travessura.

- Lembrei-me disso tudo depois de conversar com um colega pelo telefone hoje, digo ao cacto.

Meu amigo se disse apaixonado por uma mulher que, acredita ele, vai lhe partir o coração. Disse que a conheceu em uma viagem a trabalho, há seis meses. Cortejou a garota desde então. Na semana passada, conseguiu o beijo que tanto queria. Há uma semana, porém, a garota, acredita ele, o evita.

Pensei em algo para animar meu amigo, mas logo vi que não precisava. Quando ele terminou o relato, tinha um sorriso largo no rosto. Disse que estava com o beijo na lembrança e o descreveu “encantador.” Por fim, pontuou que, mesmo que aquele beijo marcasse tanto o início quanto o fim da relação entre os dois, mesmo assim ficaria feliz. E agradecido por, depois de tantos anos, ter tido a oportunidade de viver novamente uma paixão, por mais efêmera que fosse.

Cacto lança uma série de ataques contra a honra e a masculinidade de meu amigo e diz que adorou vê-lo se foder. Apesar de tudo, digo a cacto, meu amigo vivenciou o prazer de uma paixão. Algo, completo, que ele nunca experimentará.

O verdinho rebate dizendo que meu colega, por outro lado, nunca terá a satisfação de espetar os dedos de um babaca.

- Ai!

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Homem-gol



Segunda-feira, 28 de setembro de 2009. São 22h30 e estou de volta ao escritório. Ainda sonolento, cacto solta um palavrão e me repreende por tê-lo acordado – ele se assustou com o barulho da porta. Queria saber, a final de contas, o que eu estava fazendo ali.

- Torci o tornozelo no futebol. Vim aqui pegar as minhas coisas. Acho que foi grave e...

As gargalhadas de cacto me interrompem. Fazem eco no escritório.

Ele me chama de perna de pau. E aproveita para, mais uma vez, pisar em cima do meu orgulho corinthiano (o maldito odeia futebol, mas, só pra me sacanear, se diz palmeirense). Por último, diz que estou velho demais pra essas coisas.

Depois de levar um peteleco, cacto ouviu que estava enganado. Ao contrário do que ele dizia, sou muito bom jogador de futebol e o fato de ser corinthiano só contribui para confirmar isso. Por último, disse a ele que, aos 30 anos, estou exibindo o melhor da forma física. A lesão no tornozelo, portanto, interrompe uma das minhas melhores fases nos gramados sintéticos do futebol amador brasileiro.

A gargalhada voltou. Desta vez mais alta. De repente, parou. Cacto disse que eu estava com aquela cara. A mesma cara, apontou ele, que eu sempre faço quando estou prestes a começar a contar alguma história. Implorou para não ouvir mais uma das minhas chatices. Ao ver que já era tarde, começou a chorar.

Eu odeio admitir, mas cacto tem razão, pelo menos em parte: sou um perna de pau. Um perna de pau apaixonado por futebol.

Fazendo uma análise rápida, posso dizer que nunca nutri sonhos de um dia atuar profissionalmente como jogador. Pelo menos não de maneira intensa. Claro que já imaginei como seria vestir a camisa alvi-negra ou então a amarelinha da seleção. Em todas as vezes, eu apareço fazendo um gol decisivo. E vibrando, depois, de tanta emoção. É, seria ótimo.

Desde cedo eu percebi, porém, que não seria como atacante que faria progressos nesse esporte (mais tarde, concluí que não seria nesta e nem em qualquer outra posição). Por isso, comecei a jogar futebol como goleiro. Também pesou para essa decisão o fato de meu primo Pablo, um grande amigo na infância, atuar com maestria na posição.

Foi nos gramados do campo do clube mantido pela prefeitura de Mococa no bairro do Descanso, do lado da minha casa, que eu dei meus primeiros passos no esporte. A situação financeira naquela época era difícil. Não havia dinheiro para o uniforme. Treinava com blusas e calças velhas, sem luvas, com uma chuteira de segunda mão comprada pela minha mãe.

Eu me lembro até hoje do dia em que ganhei a minha primeira blusa de goleiro e par de luvas. Meu pai me chamou até o seu quarto. Disse que queria conversar comigo. Com ar severo, contou que ficou sabendo que eu fumava maconha (eu tinha menos de dez anos). Disse que, por isso, eu ficaria de castigo um longo tempo e teria que deixar de ver meus amigos. Eu negava e, aos prantos, implorava para não receber o castigo. Quando viu que eu já estava arrasado emocionalmente, meu pai disse que estava brincando. Que sabia que eu era um bom garoto e, por isso mesmo, merecia ganhar os presentes que me mostrou em seguida. Depois de mentalmente rogar pragas vigorosas sobre ele, eu aceitei os presentes e agradeci.

Mas não havia roupa nova que fizesse mudar uma realidade tão sólida quanto triste: eu era um mau goleiro. Tomava frangos vexatórios. Nas cobranças de escanteio, tinha medo de sair do gol para dividir a bola no ar com os atacantes. Não tinha, sequer, força suficiente na perna para cobrar tiro de meta. Um desastre, para resumir. Mesmo assim, insisti nos treinamentos. Acompanhava o time nas viagens para enfrentar equipes de cidades vizinhas. Me orgulhava de ser o terceiro goleiro do time e me contentava em entrar em campo, de vez em quando, nos minutos finais de alguns jogos menos importantes.

A vida de goleiro terminou com a mudança para Mogi das Cruzes, aos 13 anos. Mas a falta de habilidade permaneceu intacta. Com o tempo, as gozações depois dos frangos foram aumentando. Então, decidi passar para a linha. Seria zagueiro.

Claro que não adiantou nada. As críticas permaneceram. Mas eu tomei gosto pela coisa. E adotei uma saída: aos críticos das minhas atuações, responderia dizendo que sou um zagueiro limpo, incapaz de jogadas desleais. É, eu sei, é uma desculpa lamentável...

A verdade é que sou um jogador dedicado. Daqueles para quem não há bola perdida. Um zagueiro que vibra com cada jogada interceptada, cada bola tomada do adversário. Que comemora os raros gols que marca como uma criança. Capaz de rodar mais de 100 km numa noite de quinta-feira só para bater bola com alguns amigos. E que lamenta profundamente quando qualquer imprevisto, como a necessidade de trabalhar até mais tarde ou então, como agora, uma grave contusão, ameaça lhe deixar longe dos gramados por um período.

Cacto diz que eu devo me preocupar é em virar homem.


sexta-feira, 25 de setembro de 2009

O amigo de infância

O rancor de cacto é inversamente proporcional ao tamanho do seu corpo. Acreditam que até hoje ele não perdoou o fato de não tê-lo convidado para a minha festa de aniversário?

- Já se passaram duas semanas, cacto. Deixa isso pra lá.

Não adianta. A coisinha [se ele soubesse ler e visse que me refiro a ele dessa maneira, daria um jeito de me espetar um dedo] simplesmente não consegue relevar.

Eu precisava trabalhar, então acabei trancando o coitado no banheiro do escritório. Claustrofóbico [herança do tempo em que vivia em uma pequena redoma de plástico], cacto implorou para que eu o tirasse de lá. Prometeu me deixar em paz.

Além de não ter sido convidado para a festa, o pequeno, percebi, ficou com uma pontinha de ciúme de um amigo meu de Mococa que estava presente lá. Malagute, colega de infância, hoje vive em São Paulo. Apesar de tão próximos, fazia mais de cinco anos que não nos falávamos. Por isso, foi emocionante poder revê-lo no dia do meu aniversário.

Durante o nosso bate-papo, lembramos de algumas histórias do começo de nossas vidas lá no interior. Inclusive a nossa incrível aventura pelo mundo do rádio. A rádio DJ FM, que fundamos depois de roubar um pequeno transmissor do meu irmão. A capacidade do aparelho era suficiente apenas para levar as músicas da sala, onde ficava o estúdio, até o quarto, a uns três metros dali. Mas me lembro da nossa felicidade - minha, do Malagute e do Juninho, o terceiro mosqueteiro -, quando liguei o meu velho walkmen e sintonizei o nossa rádio.

Passávamos horas escolhendo e tocando músicas, apresentadas com pompa pelos três locutores - que também eram os três únicos ouvintes. A seleção ia de Information Society a Bad Religion; de Pet Shop Boys a Faith No More. E como nenhuma rádio vive sem propaganda, cada um doou uma camiseta branca que eu tratei de pintar, nas costas, em laranja, o indefectível símbolo da rádio DJ fm: DJFM. Desfilávamos orgulhosos com elas pela Associação Esportiva Mocoquense, o clube onde os jovens da cidade se reuniam.

Malagute sozinho foi protagonistas de histórias tão incríveis quanto...incríveis. O rapaz foi capaz de repetir a 5ª série três vezes. Repito: três vezes. Eu me lembro da mãe do coitado, desolada, sem saber o que fazer com ele depois da terceira reprovação.

A covardia também foi um traço marcante do garoto. Certa vez, um desses briguentos decidiu que ia dar uns tapas no Malagute. Naquela época, não era preciso ter motivo pra arrumar briga com alguém. E o meu amigo realmente não tinha feito nada para o então adversário. Mesmo assim, o outro decidiu que ele deveria apanhar. Malagute ficou um ano sem sair de casa. Só ia pra escola e, de vez em quando, nos acompanhava num passeio de bicicleta ali pelo bairro, de modo que, em uma emergência, pudesse rapidamente se esconder em segurança.

No dia em que completou um ano de semi-clausura, eu e o Juninho conseguimos convencer o Malagute a sair pra tomar um lanche no Bina, a lanchonete mais badalada da cidade. O nosso argumento foi que o tal que o havia ameaçado provavelmente nem se lembrava mais da cara dele.

Pois além de covarde Malagute era muito azarado. E quando a gente deixava o Bina e caminhava pela rua em direção a nossas casas, eis que damos de frente com o oponente, acompanhado de alguns amigos. O Malagute, então, levou os tapas prometidos.

O lado bom é que ele pode voltar a sair depois desse dia.

- Cacto, você tá me ouvindo?

Dormiu.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Três décadas se passaram


Quando cheguei ao escritório ontem, segunda-feira, encontrei meu amigo cacto triste. Perguntei o que tinha acontecido. Ele me disse que estava magoado porque eu não o convidei para a minha festa de aniversário, no sábado. Eu disse que o mundo ainda não estava preparado para a revelação de nosso segredo. Que ninguém acreditaria que um pequeno cacto como ele era capaz de se comunicar com um humano. Todos pensariam que eu sou louco. Pior: se acreditassem, havia um risco bem grande de que ele acabasse confiscado pelo governo e retalhado por cientistas em busca da resposta para a sua habilidade. Ele retrucou a minha baboseira com um palavrão.
Algumas horas depois, mais calmo, cacto quis saber como foi a festa. Disse a ele que me considerava um cara de muita sorte por poder reunir tantos e tão bons amigos no dia do meu aniversário de 30 anos. Cacto não resistiu e fez um comentário desagradável sobre a minha idade, avançada segundo ele. Ameacei arrancar seus parcos espinhos com uma pinça. Ele sossegou.
Como o amigo Douglas bem descreveu na festa, a chegada aos 30 anos é marcada por uma sensação estranha, como se alguém batesse com um carimbo bem na sua testa. O que diz o carimbo varia de pessoa pra pessoa. Eu ainda não consegui ainda entender direito o que ele diz a meu respeito. Só espero que não seja “corno.”
De qualquer maneira, expliquei ao meu amigo que os últimos dias têm sido de muita reflexão. De repente, ganhou força a vontade de fazer uma grande mudança na minha vida. Vontade alimentada por uma sensação cada vez mais viva de que o tempo está passando e, junto com ele, as oportunidades.
Cacto quis saber se, quando criança, eu me imaginava onde estou hoje aos 30 anos: jornalista, casado, pai de um garoto...Contei a ele que, na infância, os humanos costumam sonhar, às vezes, com as profissões ou situações mais absurdas. Dinheiro, fama, sucesso, nada disso entra na equação que resulta nesses desejos pueris. Apenas alegria, prazer...O meu filho de cinco anos, que adora sorvete, quer ser um sorveteiro quando crescer.
Eu, a princípio, queria ser um lobisomem (lobisomem não é profissão, mas, naquela época, eu não sabia nem o significado da palavra profissão). Me lembro de uma época, aos seis ou sete anos, em que eu só saía de casa para brincar na rua acompanhado das minhas orelhas pontudas feitas de papelão e de uma daquelas dentaduras brancas de plástico, com caninos enormes.
Um pouco mais velho, propalava ao mundo que ali estava um futuro cientista. No vasto quintal da minha avó, onde passei a maior parte da minha infância, ficava horas caçando insetos e pequenos animais para, depois, dissecá-los. Está vivo até hoje em minha memória o dia em que consegui capturar uma libélula e o espanto que senti ao analisar aquele bicho estranho. Fazia parte de todos os clubinhos de ciência. Até alguns anos atrás, ainda conservava, na caixa de antigas lembranças, a carteirinha de associado da Ciranda da Ciência, projeto divulgado pela Globo nos anos 80 e patrocinado pela Hoechst. Assim como um kit de química, com tubos de ensaio, pipetas e um monte de frascos com líquidos que eu usava para fazer as misturas mais esquisitas.
Cacto me chamou de “nerd nostálgico.” Eu disse que deixaria de aguá-lo pelos próximos três dias. Ele se desculpou e pediu que eu continuasse. Quis saber quando foi que eu decidi que seria um jornalista.
Essa é uma história engraçada. Perto de concluir o ensino médio, eu não tinha a mínima ideia do que queria para a minha vida. Meu pai insistia para que eu cursasse engenharia química, ignorando a minha extrema falta de intimidade com a matemática e todas as outras ciências exatas. Eu, por outro lado, sabia que a minha única chance de ter uma profissão seria com a opção pelas humanas. Depois de pensar um pouco, constatei que os cursos que mais me atraíam eram jornalismo e administração de empresas, apesar de saber absolutamente nada sobre os dois. Prestei o vestibular para os dois cursos em duas universidades diferentes. E decidi que faria a matrícula na primeira que me aprovasse. E assim foi.
Cacto soltou mais um comentário irônico. E disse que preferia esturricar no sol a ter que ouvir mais um minuto dessa história chata.