segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Dia de Vingança

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Três casas à esquerda daquela onde eu morava, em Mococa, havia uma igreja evangélica. Nos fundos, vivia o pastor com a sua família. A esposa, uma mulher com aspecto de bruxa, que parecia ter saído de um desenho animado e quase nunca colocava a cara na rua, e uns cinco ou seis filhos. Entre eles, dois garotos, Aloísio e Dado, companheiros de muitas brincadeiras nas ruas e na quadra do bairro do Descanso.

Apesar das travessuras, Aloísio e Dado foram o que a gente pode chamar de crianças comportadas. Até o dia em que o pastor morreu.

Isso aconteceu pouco tempo antes de a minha família deixar a cidade. Eu era um pré-adolescente. Aloísio e Dado já não eram mais amigos tão próximos assim. Apesar disso, pude acompanhar a transformação dos garotos em dois dos trombadinhas mais famosos daquela época.

Sem o pai rigoroso por perto, Aloísio e Dado acabaram se juntando a um grupo de moleques do bairro com uma queda pela criminalidade. O líder era um garoto alguns anos mais velho, chamado Carlinhos, que havia se mudado com a família para o bairro poucos meses antes. A partir dali, o pacato Descanso, onde eu cresci, passou a ser conhecido na cidade toda como o berço da marginalidade mocoquense.

Confiantes na impunidade que eles acreditavam que a menoridade lhes conferia, os moleques passaram a praticar pequenos furtos na região. Primeiro, se aproveitaram da típica despreocupação dos interioranos com a segurança de suas casas. Pulavam os baixos muros e portões atrás de roupas e calçados.

(Numa madrugada daquela época, minha família acordou com os latidos da nossa cachorrinha, Tuca. Não havia o que a fizesse sossegar. Meus pais chegaram a tirá-la do quintal e a colocaram para que dormisse no quarto. Mesmo assim, não parava de latir. Algo estranho para uma cadelinha acostumada a dormir tranquilamente a noite toda. Na manhã seguinte, alguns garotos da rua vieram me contar o comentário que se fazia por ali: um dos trombadinhas havia ficado impressionado com os pares de Puma Disc - uma febre da época - que eu e meu irmão mais novo havíamos desfilado no bairro na noite anterior (presente do meu pai). Ele resolveu invadir a minha casa atrás dos tênis, mas desistiu depois que foi surpreendido pelos latidos da Tuca.)

Na sequência, pequenos comércios das redondezas passaram a ser alvo do bando. Era comum ouvir os comentários de vizinhos sobre um bar, uma padaria e, depois, até supermercados, que haviam sido invadidos por ladrões, algo inimaginável até então. Foi nessa época que um fusca preto e branco da Polícia Civil passou a fazer rondas no bairro.

Em dezembro de 1992, minha família se mudou para Mogi das Cruzes, na grande São Paulo. A adaptação e a saudade dos amigos eram as nossas principais preocupações. Até que dois meses depois, um dos meus tios telefona para avisar que nossa casa em Mococa havia sido invadida por ladrões.

Desde o primeiro momento as suspeitas recaíram sobre os trombadinhas do Descanso. Não havia outra possibilidade. Por isso mesmo, durante a viagem em direção ao interior eu me esforçava para entender como é que meus amigos de infância, Aloísio e Dado, poderiam ter feito uma filhadaputagem tão grande comigo.

Algumas horas depois, quando entramos na casa, a impressão era de que um tornado havia passado por lá. A comida que mantínhamos no armário (naquela época, não ficávamos mais do que 15 dias longe da cidade) serviu de arma para a destruição. Enlatados, sardinha, leite, café, tudo foi espalhada pelos móveis, sofá e camas. A televisão da sala foi explodida quando jogaram um litro de uísque do meu pai dentro dela, ligada. Centenas de fotos da família que ainda não tinham sido levadas para Mogi, estavam espalhadas pelo chão, molhadas de urina e sujas de fezes. Nas paredes, no teto e nas cortinas, riscos de molho de tomate e mostarda, além de ameaças contra mim. Alguns brinquedos eletrônicos e roupas haviam sido levados.

Lembro-me até hoje de uma pequena multidão em frente à minha casa, onde também estava estacionado um carro da polícia. Dentro dele, detido, Carlinhos. Pouco depois, seguimos todos para a delegacia da cidade. Os policiais perguntaram ao meu pai se ele queria dar uns tapas em Carlinhos. Em seguida, o garoto, de uns 16 anos, gritava ao som de bofetadas.

Nas horas seguintes, um a um os trombadinhas foram chegando à delegacia, levados pelos policiais. Entravam todos em uma pequena sala. A porta, branca, ficava fechada. Mesmo assim, do lado de fora eu conseguia ouvir o barulho dos tapas e dos gritos dos moleques.

Poucos dias depois, voltamos a Mococa e encontramos os garotos todos na rua. Reunidos na esquina, soltavam gargalhadas sarcásticas quando a família passava de carro.

Naquele mesmo dia, meu pai procurou uma marcenaria do bairro. Encomendou três bastões, parecidos com aqueles de beisebol, só que com furos que vazavam a madeira em uma das pontas, para que fossem colocados pedaços de fio que serviriam de suporte para as mãos. No final da tarde, chamou ao meu irmão mais velho e a mim, então com 13 anos, para conversar. E disse que, ao anoitecer, sairíamos os três para dar uma lição nos trombadinhas de haviam destruído a nossa casa.

Bastões à mão, o trio seguiu em direção ao carro. Quando pisamos na calçada, avistamos três dos moleques conversando na esquina, a menos de 50 metros dali. Dois deles eram justamente os irmãos Aloísio e Dado. Logo que nos avistaram, os três se levantaram e subiram em direção ao pasto recém loteado, a duas quadras dali. Meu pai, meu irmão e eu entramos no carro e fomos atrás deles.

Dentro do Tempra vinho, percorremos as ruas recém asfaltadas do condomínio, ainda sem casas, em busca dos trombadinhas. Depois de algum tempo vasculhando o terreno, chegamos à conclusão de que haviam deixado o lugar pela entrada de cima. Saímos nós também do loteamento e passamos a vasculhar as ruas do bairro vizinho.

Pouco depois, descíamos vagarosamente por uma rua de paralelepípedos quando chegamos num cruzamento. À esquerda, avistamos os três garotos caminhando. Eles perceberam o carro e saíram correndo. Meu pai acelerou o Tempra atrás deles. Segundos depois, alcançamos o trio, que se embrenhou por um terreno enorme, às margens de uma das principais avenidas da cidade. Quando o carro parou, eu já estava com a porta aberta e o enorme e pesado bastão firme na mão direita.

Eu me lembro que era tarde da noite e não havia qualquer movimento no bairro. Na completa escuridão do terreno irregular, eu me guiava pelo barulho dos passos dos garotos, que corriam logo na minha frente. O primeiro que se dispersou do trio, virou o alvo. A perseguição durou mais alguns metros, até que ele se deparou com uma imensa valeta. O impulso não foi suficiente para completar o salto, e ele caiu de bruços na outra margem do canal. Antes que ele pudesse se levantar, eu saltei em sua direção e deitei um forte golpe com o bastão em suas costas. O garoto urrou de dor.

Quando me levantei, vi que se tratava de Dado, o mais jovem dos trombadinhas, então com 13 anos, assim como eu. Até um par de anos atrás, Dado podia ser considerado um dos meus melhores amigos e parceiro preferencial nas peladas jogadas na quadra do bairro. Agora estava ali, deitado no lama e implorando pelo meu perdão.

Cego pela cólera alimentada pelo meu pai, sedento de vingança, segurei o garoto até que, alguns segundos depois, chegaram meu pai e meu irmão. Dado levou mais uns bofetões e foi liberado. Nós três voltamos para casa. Pelos anos seguintes, os bastões ficaram pendurados no beliche do meu antigo quarto. Nunca mais foram usados.

4 comentários:

  1. Fabião,

    os bastões ainda estão aí? Preciso acertar contas com uns filhos da puta. Cê me ajuda? Brincadeirinha. Seguinte: como é que o valentão de antigamente virou o cagão de agora, hein? E não sei não, acho que esse ódio cego manifestado durante a agressão ao coitado do trombadinha deve ter a ver com algum caso homossexual mal resolvido na infância. Aliás, você tem Dado em casa?

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  2. Hahahahahahahahahahahhaa. Evaldo e seus comentários sempre pertinentes.

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  3. Que selvageria. Você foi adolescente perturbado, Fabio Amato...

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  4. Falando em selvageria, acabei me esquecendo de perguntar: que fim levou o cacto? Você anda torturando o pobre?

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