sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Sobre corações partidos, mas nem tanto

- Tínhamos, ambos, por volta de sete anos. Éramos crianças, claro. Mesmo assim, tenho certeza, foi o meu primeiro amor.

Cacto me interrompe. Diz que nada havia me perguntado.

Falava a ele da minha primeira namorada. Chamava-se Julia. Era linda. Loira de olhos verdes. E me amava. Naquela mesma época, teve que deixar o Brasil para viver com os pais por um período na Argentina. Namoramos à distância. Trocávamos cartas. As dela sempre vinham também recheadas com maços vazios de cigarros, que eu colecionava.

Ao lado da casa da avó de Julia, perto daquela onde eu vivi, em Mococa, havia um imóvel antigo, também da família, onde havia funcionado um centro espírita. Desativado o centro, o espaço passou a receber os bailinhos onde reuníamos a garotada toda do bairro para dançar e paquerar.

Cacto pergunta se foi nessa época que eu virei maconheiro, e gargalha.

Era uma época de pura e total inocência. Entre os garotos, a competição era para ver quem tinha coragem, durante as danças, de arriscar uma inocente passada de mão nos glúteos das garotinhas. Era o máximo da malandragem a que nos sujeitávamos.

Inesquecíveis aqueles bailinhos. Foi em um deles que eu virei corno pela primeira vez. (cacto, enfim, mostra interesse em um relato meu). Estávamos lá todos, dançando ao som de uma vitrola portátil, quando vejo Julia – aquela mesma, o meu primeiro amor – aos beijos com um garoto da vizinhança.

Cacto quer saber qual foi a minha reação. Respondo que não me recordo. Provavelmente, abandonei o baile e fui para casa, magoado. Maldoso, cacto diz que, se não maconheiro, frouxo ele agora já sabe que eu sou desde criança.

Pouco depois, Julia voltou para a Argentina. Mais algum tempo e foi a minha vez de sair da cidade. Reencontramo-nos uma única vez depois disso tudo. Foi há uns 13 anos, numa das minhas visitas a Mococa. Julia estava extremamente bêbada. E demonstrou muita alegria e surpresa em me ver. Antes que pudesse me dar conta, estávamos de lábios colados.

Minhas mãos logo avançaram a explorar seus lindos peitos. Foi inevitável me lembrar do garotinho traído anos atrás. Sentia que ele sorria dentro de mim com a travessura.

- Lembrei-me disso tudo depois de conversar com um colega pelo telefone hoje, digo ao cacto.

Meu amigo se disse apaixonado por uma mulher que, acredita ele, vai lhe partir o coração. Disse que a conheceu em uma viagem a trabalho, há seis meses. Cortejou a garota desde então. Na semana passada, conseguiu o beijo que tanto queria. Há uma semana, porém, a garota, acredita ele, o evita.

Pensei em algo para animar meu amigo, mas logo vi que não precisava. Quando ele terminou o relato, tinha um sorriso largo no rosto. Disse que estava com o beijo na lembrança e o descreveu “encantador.” Por fim, pontuou que, mesmo que aquele beijo marcasse tanto o início quanto o fim da relação entre os dois, mesmo assim ficaria feliz. E agradecido por, depois de tantos anos, ter tido a oportunidade de viver novamente uma paixão, por mais efêmera que fosse.

Cacto lança uma série de ataques contra a honra e a masculinidade de meu amigo e diz que adorou vê-lo se foder. Apesar de tudo, digo a cacto, meu amigo vivenciou o prazer de uma paixão. Algo, completo, que ele nunca experimentará.

O verdinho rebate dizendo que meu colega, por outro lado, nunca terá a satisfação de espetar os dedos de um babaca.

- Ai!

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Homem-gol



Segunda-feira, 28 de setembro de 2009. São 22h30 e estou de volta ao escritório. Ainda sonolento, cacto solta um palavrão e me repreende por tê-lo acordado – ele se assustou com o barulho da porta. Queria saber, a final de contas, o que eu estava fazendo ali.

- Torci o tornozelo no futebol. Vim aqui pegar as minhas coisas. Acho que foi grave e...

As gargalhadas de cacto me interrompem. Fazem eco no escritório.

Ele me chama de perna de pau. E aproveita para, mais uma vez, pisar em cima do meu orgulho corinthiano (o maldito odeia futebol, mas, só pra me sacanear, se diz palmeirense). Por último, diz que estou velho demais pra essas coisas.

Depois de levar um peteleco, cacto ouviu que estava enganado. Ao contrário do que ele dizia, sou muito bom jogador de futebol e o fato de ser corinthiano só contribui para confirmar isso. Por último, disse a ele que, aos 30 anos, estou exibindo o melhor da forma física. A lesão no tornozelo, portanto, interrompe uma das minhas melhores fases nos gramados sintéticos do futebol amador brasileiro.

A gargalhada voltou. Desta vez mais alta. De repente, parou. Cacto disse que eu estava com aquela cara. A mesma cara, apontou ele, que eu sempre faço quando estou prestes a começar a contar alguma história. Implorou para não ouvir mais uma das minhas chatices. Ao ver que já era tarde, começou a chorar.

Eu odeio admitir, mas cacto tem razão, pelo menos em parte: sou um perna de pau. Um perna de pau apaixonado por futebol.

Fazendo uma análise rápida, posso dizer que nunca nutri sonhos de um dia atuar profissionalmente como jogador. Pelo menos não de maneira intensa. Claro que já imaginei como seria vestir a camisa alvi-negra ou então a amarelinha da seleção. Em todas as vezes, eu apareço fazendo um gol decisivo. E vibrando, depois, de tanta emoção. É, seria ótimo.

Desde cedo eu percebi, porém, que não seria como atacante que faria progressos nesse esporte (mais tarde, concluí que não seria nesta e nem em qualquer outra posição). Por isso, comecei a jogar futebol como goleiro. Também pesou para essa decisão o fato de meu primo Pablo, um grande amigo na infância, atuar com maestria na posição.

Foi nos gramados do campo do clube mantido pela prefeitura de Mococa no bairro do Descanso, do lado da minha casa, que eu dei meus primeiros passos no esporte. A situação financeira naquela época era difícil. Não havia dinheiro para o uniforme. Treinava com blusas e calças velhas, sem luvas, com uma chuteira de segunda mão comprada pela minha mãe.

Eu me lembro até hoje do dia em que ganhei a minha primeira blusa de goleiro e par de luvas. Meu pai me chamou até o seu quarto. Disse que queria conversar comigo. Com ar severo, contou que ficou sabendo que eu fumava maconha (eu tinha menos de dez anos). Disse que, por isso, eu ficaria de castigo um longo tempo e teria que deixar de ver meus amigos. Eu negava e, aos prantos, implorava para não receber o castigo. Quando viu que eu já estava arrasado emocionalmente, meu pai disse que estava brincando. Que sabia que eu era um bom garoto e, por isso mesmo, merecia ganhar os presentes que me mostrou em seguida. Depois de mentalmente rogar pragas vigorosas sobre ele, eu aceitei os presentes e agradeci.

Mas não havia roupa nova que fizesse mudar uma realidade tão sólida quanto triste: eu era um mau goleiro. Tomava frangos vexatórios. Nas cobranças de escanteio, tinha medo de sair do gol para dividir a bola no ar com os atacantes. Não tinha, sequer, força suficiente na perna para cobrar tiro de meta. Um desastre, para resumir. Mesmo assim, insisti nos treinamentos. Acompanhava o time nas viagens para enfrentar equipes de cidades vizinhas. Me orgulhava de ser o terceiro goleiro do time e me contentava em entrar em campo, de vez em quando, nos minutos finais de alguns jogos menos importantes.

A vida de goleiro terminou com a mudança para Mogi das Cruzes, aos 13 anos. Mas a falta de habilidade permaneceu intacta. Com o tempo, as gozações depois dos frangos foram aumentando. Então, decidi passar para a linha. Seria zagueiro.

Claro que não adiantou nada. As críticas permaneceram. Mas eu tomei gosto pela coisa. E adotei uma saída: aos críticos das minhas atuações, responderia dizendo que sou um zagueiro limpo, incapaz de jogadas desleais. É, eu sei, é uma desculpa lamentável...

A verdade é que sou um jogador dedicado. Daqueles para quem não há bola perdida. Um zagueiro que vibra com cada jogada interceptada, cada bola tomada do adversário. Que comemora os raros gols que marca como uma criança. Capaz de rodar mais de 100 km numa noite de quinta-feira só para bater bola com alguns amigos. E que lamenta profundamente quando qualquer imprevisto, como a necessidade de trabalhar até mais tarde ou então, como agora, uma grave contusão, ameaça lhe deixar longe dos gramados por um período.

Cacto diz que eu devo me preocupar é em virar homem.